//username of moderater
Fundação Estudar
InícioConhecimentos geraisTalibã e mulheres: entenda a relação do grupo com o acesso à...

Talibã e mulheres: entenda a relação do grupo com o acesso à educação universal

Mariane Roccelo - 08/04/2022
Comentários:

Em agosto de 2021, o Talibã assumiu o controle do Afeganistão depois de 20 anos fora do poder. Na ocasião, a comunidade internacional voltou a atenção para a situação vivida pelos afegãos – principalmente para as mulheres. O histórico de brutal repressão de gênero por parte do Talibã trouxe de volta uma série de incertezas em relação à manutenção de direitos básicos das afegãs, entre eles o acesso à educação. Após mais de 6 meses de governo, as últimas notícias são desanimadoras.

No último dia 22 de março, centenas de meninas com mais de 12 anos foram mandadas de volta para as casas quando tentaram iniciar os estudos no ano letivo de 2022 – o Afeganistão, assim como o Brasil, inicia o ano letivo no primeiro semestre do ano. A ação foi promovida pelo Ministério da Educação do Talibã e considerada uma traição pela comunidade internacional.

Leia também: “Potencial de escala” de conflito na Ucrânia é incerto, diz brasileiro especialista em Estudos de Guerra

No início de 2022, o governo do país havia prometido que a educação de meninas estaria garantida e haveria escolas específicas para o ensino dessas alunas. Entretanto, a decisão foi anulada pelo Talibã, que ordenou que as escolas permaneçam fechadas até um segundo aviso.

De acordo com pesquisadores da área, os motivos para a decisão foram causados por conflitos internos do próprio Governo do Talibã. No anúncio oficial, publicado pela agência de notícias estatal Bakhtan, o governo informou que as estudantes devem aguardar um novo plano para a educação de mulheres, que será montado de acordo com “tradição e cultura da Sharia e afegã”.

Mulheres proibidas de estudar

Da última vez que o grupo assumiu o poder no Afeganistão, um regime que durou de 1996 a 2001, as mulheres foram proibidas de estudar, trabalhar, sair de casa desacompanhadas de um marido ou tutor do sexo masculino, além de impedidas de serem atendidas por médicos homens – foi um total banimento da vida pública. 

Leia também: Como é estudar no Oriente Médio (sendo brasileira, mulher e não-muçulmana)

O medo das afegãs de voltar a viver daquela forma fez com que várias saíssem às ruas em protesto contra o Talibã no último ano, mesmo com todos os riscos que se pronunciar contra o governo publicamente representa. Em agosto, durante um desses atos, protestantes foram repreendidas de forma truculenta pelas forças militares afegãs:

No tweet a seguir, está escrito: “De acordo com um vídeo postado nas redes sociais, várias mulheres afegãs pretendem deixar o país após a conquista das cidades pelo Talibã.#افغانستان Chame as tropas dos EUA no aeroporto de Cabul para ajudá-los a fugir do Afeganistão”.

 

Mulheres com acesso apenas à área de saúde

Durante o regime anterior do Talibã (1996-2001), a única área em que as mulheres podiam estudar e desenvolver uma carreira era na área de saúde. Essa exceção acontecia porque, em parte, apenas mulheres poderiam atender outras mulheres.

“Mas o que acontecia é que, em muitos organismos que tinham médicas e enfermeiras, essas profissionais acabavam fugindo por conta dos conflitos no país”, explica Aureo Toledo, Ph.D e professor de Relações Internacionais e Estudos para Paz na Universidade Federal de Uberlândia. “Então não havia pessoas para atender as mulheres”. 

Na época, a consequência dessa política é que as mulheres não tinham acesso de qualidade ao sistema de saúde. Em uma simples consulta, o médico só podia ter contato com o acompanhante homem, que ficava responsável por repassar todas as informações sobre a paciente.

Banimento dos estudos e da vida pública

A exclusão da vida pública teve consequências para todo o sistema de ensino do Afeganistão. “Até então, muitas mulheres eram professoras, e quando elas não puderam mais trabalhar, o sistema educacional foi colapsando”, conta Aureo. Somente em Cabul, nesse período mais de 7 mil professoras foram demitidas e 63 escolas fechadas, o que afetou mais de 100 meninas, 8 mil universitárias, além de 150 mil estudantes do sexo masculino.

Atualmente, o Afeganistão possui um dos piores índices de alfabetização do mundo, onde menos de 80 meninas para cada 100 meninos concluem o primário, de acordo com o Global Education Monitoring Report 2020 (Relatório Global de Monitoramento da Educação), da Unesco. Uma das consequências desse deficit é o difícil acesso ao ensino superior no país. Nos rankins internacionais que avaliam as melhores universidades, como o QS Top Universities e o Times Higher Education, não consta nenhuma instituição afegã entre as 1000 melhores do mundo. 

Leia também: Duolingo expande serviços e lança a campanha “falar inglês não custa”

Em 1996, quando assumiu o país pela primeira vez, o Talibã chegou a reconhecer verbalmente o direito universal à educação, entretanto, proibiu através de um decreto que meninas acima de 8 anos, período de início da puberdade, estudassem. No primeiro momento, o decreto foi imposto com a justificativa de ser temporário, mas a medida nunca foi derrubada e durou até a queda do regime, em 2001. As semelhanças com a postura do Talibã de hoje são inúmeras. 

Queda do regime e retorno gradual ao sistema de ensino

O fim do primeiro regime do Talibã aconteceu em 2001, após os atentados do World Trade Center, quando os Estados Unidos deu início à Guerra do Afeganistão e à ocupação do território afegão com a justificativa de combater o grupo Al Qaeda.

Com a saída do Talibã, “em centros urbanos era possível ver mulheres retornando para escolas já em 2001, mas em outras regiões esse processo foi mais lento”, explica o professor. Naquela época, houve um processo de reconstrução do sistema educacional no país que incluía a reestruturação das universidades.

De acordo com Aureo, nesse período aconteceram alguns avanços, como a obtenção de cotas para mulheres no parlamento em 2014.  “Muitas mulheres puderam fazer campanha, e algumas candidatas tiveram muito mais votos do que se imaginava”, conta.

Futuro incerto

Na semana em que o Talibã retomou o controle do Afeganistão, um representante do regime, Suhail Shahee, afirmou para o veículo Sky News que “estamos comprometidos com os direitos das mulheres, com a educação, com o trabalho e com a liberdade de expressão, à luz de nossas regras islâmicas”.

No tweet a seguir, de um veículo afegão, está escrito:

“Um oficial do Talibã afirma que, até novo aviso, todas as universidades da cidade estarão fechadas. De acordo com o funcionário do Talibã, a razão para esta decisão foi a situação militar na sociedade e os chefes desconhecidos de muitos departamentos sob controle do Talibã”.

A estudante Aisha Khurram, ex-embaixadora da juventude da ONU, contou no último dia 15 na mesma rede social: “alguns professores se despediram de suas alunas quando todos foram evacuados da Universidade de Cabul esta manhã … e talvez não vejamos nossa formatura como milhares de alunos em todo o país”.

Por que manter a repressão contra mulheres?

O professor Aureo conta que um dos principais motivos para o Talibã sustentar tantas políticas repressivas é uma tentativa de manter as aparências de que o regime segue as leis muçulmanas. “As mulheres se tornaram uma vitrine para mostrar para a população que o Talibã é de fato um movimento religioso”, explica.

“O Alcorão tem uma série de ensinamentos de código civil de vida, e tem coisas, em relação ao sistema financeiro e política, que o Talibã não consegue seguir”. Entre as contradições, está, por exemplo, uma suposta relação do grupo com o tráfico internacional de drogas. “As mulheres e minorias se tornaram uma vitrine para tentar justificar o injustificável”, explica. 

Pobreza e conservadorismo são agravantes

“É bem delicada a questão do acesso das mulheres à educação no Afeganistão, não só pelo Talibã mas porque existe uma resistência muito grande nas áreas rurais em relação a educação feminina”, explica Beatriz Carvalho, formada em Relações Internacionais com pesquisa sobre o Afeganistão e aluna do professor Aureo.

Ela conta que, durante o processo de reconstrução do país, após a saída do Talibã em 2001, houve um deficit de atenção em relação às zonas mais afastadas dos centros urbanos. “Raramente em lugares rurais existem escolas, e as que existem, a maioria não permite estudantes do sexo feminino”, explica.

Leia também: As Melhores Bolsas de Estudo com Inscrições Abertas

Além disso, ela conta que as mulheres no Afeganistão sempre conviveram com agravantes, como pouca mobilidade social e oportunidades de emprego. “As meninas sempre tiveram muito menos incentivo para continuar na escola, e com o Talibã isso piorou”.

PACE-A

Em 2006, durante a ocupação do território afegão e Guerra do Afeganistão, a agência governamental USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento) implantou no país o programa PACE-A (Partnership for Advacing Community-based Education in Afghanistan – parceria para promover a educação de base na comunidade no Afeganistão), com objetivo de expandir o aprendizado de qualidade e as oportunidades de vida para as populações marginalizadas, com foco em meninas e mulheres.

De acordo com Beatriz, apesar das dificuldades regionais enfrentadas, as iniciativas de incentivo aos estudos foram bem-sucedidas. “Eles conseguiram aumentar quase um milhão de crianças com acesso à educação, e as meninas representavam uma parte desses estudantes”, conta.

Origem do Talibã

“Talibã é o plural de talib, que significa estudante, são os estudantes religiosos”, explica o professor Aureo. A origem do grupo está relacionada ao fim da Guerra Fria. Nos últimos anos de domínio soviético na região, os Estados Unidos, país inimigo, investiu e treinou grupos armados para combater o então Governo Soviético (URSS).

Após a saída da URSS da região, esses grupos armados começaram a brigar entre si para assumir o governo, o que resultou em uma guerra civil que acabou com o país e durou entre 1992 e 1994.  “Em meio a uma população extenuada, surge um movimento que diz ser algo diferente, religioso e muçulmano, que começou a atrair a sociedade – cansada com tanto conflito”, explica.

Leia também: DAAD: bolsas de estudo para a Alemanha com inscrições abertas

Foi assim que o Talibã chegou ao poder em 1996. O professor conta que, no auge, o regime chegou a governar 90% do Afeganistão. “Mas sempre tiveram focos de resistência”, afirma.

Queda do Talibã em 2001

Beatriz conta que, durante a ocupação dos Estados Unidos, o país se alinhou a senhores de guerra na tentativa de combater, num primeiro momento, a Al Qaeda, e posteriormente o Talibã. Isso “empoderou esses senhores em termos políticos, permitindo que eles alcançassem cargos no governo”, explica.

Com o passar do tempo, essa relação deteriorou a legitimidade do governo no Afeganistão. “Quando a população não consegue confiar no Estado, ela facilmente cai sobre a influência do Talibã”, conta a estudante.

Direito das mulheres à educação e à vida pública

“Quando a gente considera que a educação é uma ferramenta chave na busca pela paz, vemos que, quando as mulheres participam dos processos, há uma porcentagem maior de sucesso”, afirma Beatriz. Assim, o objetivo nesse momento é defender os avanços conquistados nas últimas décadas.

O acesso das mulheres à educação tem impacto positivo que vai além do ganho particular. De acordo com a estudante, “quando a gente fala sobre educação para mulheres, isso não está focado só na educação individual mas também na contribuição para a sociedade e para a transformação social”.

 

 

 

 

 

 

O que você achou desse post?

Sobre o escritor

Mariane Roccelo
Escrito por Mariane Roccelo. Entre em contato com Estudar Fora pelo e-mail [email protected].

Artigos relacionados